BEM-VINDO AO MARAVILHOSO MUNDO DE TIBIA
“O ambiente é soturno, uma sala escura, paredes pintadas de azul marinho e prateado. O ar é artificial, beirando sempre os 20° C temperados pelo enorme ar condicionado interno. A luz apagada e o brilho hipnótico dos monitores iluminavam os rostos absortos. (...) Os gritos e xingamentos entre os jovens que jogavam games, impediam que me concentrasse nos meus afazeres digitais e, acima de tudo, eu considerava um “desrespeito” estarem aos berros num lugar em que nem todos estavam realizando a mesma atividade.
(...) Meu computador permaneceu estragado por quase um mês e eu me via obrigada a freqüentar a lan house diariamente para acessar a Internet. Escolhia ir ao início da tarde, na esperança de que não houvesse muitos jovens jogando, mas, para minha insatisfação, eles estavam sempre lá, em qualquer horário, ao menos um, e esse um, mesmo que mais contido, seguia as mesmas ações de seus amigos e, a qualquer momento, um grito tirava-me de minha serena concentração: “AAAAHHHH, VOU MORRER, VOU MORRER!” “VEM, MEU, VEM, ELES VÃO ME MATAR!... VEM LOGO”.
A situação piorava muito quando era um grupo de quatro ou mais pessoas jogando. Mas foi justamente num dia de grande euforia (...) [que] levantei-me de minha cadeira, na tentativa de ser vista, e decidi que faria alguma reclamação. Eles estavam completamente absortos nos vídeos, com fones nos ouvidos e inteiramente vidrados no jogo. (...) Fiquei observando o que se passava, tentando entender aquela gritaria, aquele monte de jovens entrando e saindo, caminhando pela sala. Naquele instante, a minha perturbação virou curiosidade antropológica. O computador que, no meu entendimento, era algo privado, solitário e de relação quase que em simbiose mental e silenciosa entre sujeito e máquina, de repente estava sendo usado em grupo com tanta excitação, gritaria, agito e comoção.”
Esse foi um fragmento de um artigo publicado pela antropóloga Vanessa Andrade Pereira, no qual ela procura apresentar a sociabilidade juvenil por meio das Lan Houses e das interações através de jogos online. Vanessa descreveu o cotidiano de jovens e buscou demonstrar como eles intensificam seus laços sociais através do Tibia.
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Fonte: tibia.com |
Para quem não sabe, Tibia é um dos mais antigos e mais bem sucedidos jogos multiplayer online. Neste jogo, criado por estudantes alemães, pessoas de todo o mundo se encontram em um mundo virtual para explorar áreas, resolver enigmas complicados e realizar façanhas heróicas. No jogo, são representadas cidades no estilo medieval, florestas, cavernas, desertos, rios e mares, e outros dos mais diversos ambientes, onde os personagens não tem um objetivo específico para finalizar o jogo, pois não se trata de uma história linear. O jogador escolhe o que quer e quando fazer: se quer participar de eventos, conversar, formar grupos, comercializar, treinar, etc. é uma comunidade virtual sem limites de descobertas.
Apesar de ser mais comum entre jovens e crianças, o Tibia é jogado sem distinção de classe, gênero e idade. Para apresentar o mundo ‘tibiano’ aos pais, a empresa responsável pelo jogo disponibilizou informações (que estão sintetizadas a seguir) que demonstram como essas experiências sociais de mundos virtuais podem contribuir positivamente no desenvolvimento da criança.
Em primeiro lugar, para quem critica os jogos digitais como anti-sociais, cabe mencionar que, dentro do ambiente de jogo, é constante o relacionamento com outras pessoas e a formação de grupos em busca de um objetivo geral, o que acaba gerando o conceito de comunidade. Também, neste contexto, é necessário que a criança, ou adolescente (ou seja lá quem for) tome iniciativa numa conversa ou negociação, desenvolvendo seu lado comunicativo.
O respeito às normas do jogo é outro fator importante. Não somente às leis oficias do jogo, mas também às regras que os jogadores estabelecem entre si para que seja possível um ambiente ideal para o desenvolvimento comum. Assim, os jogadores sempre tem em mente as regras de conduta que devem ser seguidas para a manutenção de um ambiente ideal (se bem que nem sempre são seguidas).
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Fonte: da web |
Outros elementos de Tibia (e de outros jogos online), como criatividade, o exercício do idioma, conceitos básicos de economia dentre outros, poderiam ser considerados aqui. Mas o importante mesmo é lembrarmos que, em muitos casos, o contato interpessoal dentro do jogo, citado anteriormente, passa para o âmbito real, e o jogo fica apenas como um elemento (aliás, um dos) concentrador do grupo, como nota a antropóloga. Grupo este que compreende uma ‘rede de relações’ que vai além do jogo, relações essas que envolve parentesco, amizades de infância ou de escola, namoros, situações de disputa de poder e prestígio, de briga, proteção, ameaças, drogas, constrangimentos e favorecimentos, envolve vários valores dentro e fora do jogo: honra, lealdade, virilidade, beleza, astúcia, sinceridade, honestidade.
Em uma entrevista à revista IHU on-line, a antropóloga Vanessa A. Pereira lembra:
“Os valores da juventude digital são os mesmos da sociedade, das relações familiares. É um erro pensar que o game “cria” um valor que possa ser desconectado de uma referência de vida dos jogadores. (...) Dizer que games de disputas promovem e incentivam a violência, é um exagero. Há uma série de trabalhos na área das Ciências Cognitivas que exaltam a importância do game para o desenvolvimento de certas habilidades em jovens com problemas de dislexia, por exemplo.”
E, para finalizar suas considerações em seu artigo, descreve:
“No Tibia os níveis de amizade, parcerias e proteções são construídos, mantidos ou quebrados de acordo não só com escolhas pessoais, mas, a partir de uma rede de relações do mundo offline, que interfere e emana para o game.”
A lan-house vai além de jogos e internet, é um local de zuação e diversão, os jovens vão lá para encontrar amigos. Nunca presenciei, ou sequer ouvi relatos de consumo de drogas. Apesar de certa liberdade dada aos jovens, são raras as discussões, e quando ocorrem são logo apaziguadas pelo grupo. Vanessa Pereira ainda nota que, apesar de casos em que os estudantes se ausentem às aulas, é necessário que se reflita a situação da escola (principalmente o ensino público) e a consideração dos jovens ao sistema de ensino. É preciso lembrar também que, o que muitos consideram como 'vício' em games, é só um momento da vida destas pessoas, e essa fixação poderia se dar pela bicicleta, skate... Além do mais, os jovens não deixam de namorar, jogar bola ou ajudar os pais, como diz a antropóloga em entrevista de 2008 à Central da Periferia do Fantástico.
Enfim, o que se busca é desmistificar o cotidiano do jovem dentro da lan-house e em relação aos jogos on-line. Cotidiano que é muito discriminado por quem não compartilha desta realidade, e que é apresentado aqui como parte, como uma continuidade de nossas relações dentro de casa, na escola, ou na rua, e que serve da mesma forma como experiência que vamos levar durante toda nossa vida.
“Parecia inofensivo, mas já te dominou.
Foi ver como que era, provou, gostou,
e nunca mais parou.
Tem gente que critica, mais é porque nunca jogou,
na lan-house o bagulho domina, até o dono já viciou.
Tibia. Esse jogo é ‘mó’ atraso.
Só quem tá ali perto, é quem tá ligado.
Ai, eu canto assim porque foi o que eu vivi,
vejo vários manos que não são diferentes de mim
(...)”
Fatos Reais (MC Tibiano)
Para quem quiser saber mais sobre a experiência da autora dentro da lan-house e sua iniciação dentro do mundo do Tibia, é só
CLICAR AQUI.
PEREIRA, Vanessa Andrade. Entre games e folgações: apontamentos de uma antropóloga na lan house Nov. 2007. Etnográfica 11 (2): 327-352